segunda-feira, 29 de julho de 2013

o erro do universo

 imagem: Manuel Alves

Olá, o meu nome é Ana Maria e tenho leucemia. O meu nome completo é Ana Maria Faria Pequenina. Mesmo Pequenina, porque é o último nome do meu pai apesar de ele não ter nascido menina. De onde veio, não me perguntem, não sei. É o meu nome e foi sempre assim que me chamei. Sempre não é muito tempo. É o tempo todo que aguento. O meu sempre tem seis anos e quatro meses. Quando as pessoas me visitam perguntam-me de todas as vezes. É desde que nasci. Só o tempo que vivi.
A minha mãe chora sempre que se deita ao meu lado, na cama. E depois sorri. Diz-me “vou ficar só mais um pouquinho aqui.” Limpa o nariz, finge que está feliz e diz que me ama.
Havia uma senhora que me visitava duas vezes por dia. Ficámos amigas e eu até já lhe chamava tia. Era uma senhora engraçada e aparecia sempre animada. Também tinha leucemia mas escondia. Pensava que eu não sabia. Dizia-me coisas engraçadas acerca do transplante de medula. Uma vez contou-me uma história divertida em que havia uma menina que era um biscoito e a leucemia era um bicho-papão com gula.
Era uma senhora engraçada. Fazia-me rir. Estou preocupada. Deixou de vir.
O senhor doutor é muito amável. Nunca o ouvi dizer a palavra incurável. É capaz de a ter dito aos meus pais. Mas eu não preciso de saber mais.
As enfermeiras são todas boazinhas. Dizem-me sempre olá a fazem-me festinhas. Uma vez, uma sentou-se na beira da minha cama, pegou-me na mão e chorou. Ouvi depois comentar que ela também tinha uma menina como eu que não se curou. Chorei por causa dela sem ninguém saber. Não era para se dizer.
Hoje, a minha mãe trouxe-me um bolo de aniversário com duas velas. Ri-me da diferença de tamanho delas. Uma era normal e tinha um seis escrito. A outra era desigual, mais pequena e com um quatro, e faziam um par bonito. A minha mãe canta-me os parabéns todos os meses, no dia em que nasci. Sopro as velas e ela dá-me um beijo. Depois sai do quarto, para chorar onde eu não vejo. Quando chegar o dia de fazer sete anos sei bem que já não estarei aqui. Soprei as velas e sorri.

domingo, 14 de julho de 2013

carta de amor

imagem: Manuel Alves

Olá.
Ainda não nos conhecíamos e já eu pensava em ti. Por mim, vivíamos tudo já, aqui, os dois, e deixávamos as preocupações do fim para depois. Sei que ainda não me conheces de verdade, mas assim também não me esqueces nem sofres de saudade. Prefiro sentir eu o vazio de não estar aí e sofrer esse buraco no peito por ti.
Sabes o que é nascer com uma pessoa no coração? É uma espécie de gravidez em que tudo o que tens a crescer dentro de ti é emoção. Quando se nasce com essa antecipação de conhecer quem se quer é preciso força para combater a solidão até se encontrar essa razão de ser.
Todos vivemos para alguém. Sem essa dedicação somos quem? Pessoa. Boa? É possível. Mas pessoa boa dedicada é preferível. Se não gostarmos assim de alguém não somos maus, somos apenas ramos de árvore secos, reduzidos a paus, sem vida para dizermos olá ao vento, e quebramos no estalo triste de um lamento. Depois vem o chão. Mas se formos dois, não há esse medo, há sempre aquela mão que nos ajuda a levantar de uma queda que nos apanha demasiado cedo.
Para sempre, e tudo o que é infinito, para além do bom e do bonito. Depois de ambos sabermos que existimos, mesmo que estejamos sós, nunca estaremos sozinhos. Insistimos até que nos falte a voz e, mesmo sem som, mesmo sem luz, seguimos esse afecto que nos conduz, e no escuro do abraço trocamos carinhos.
Queres esta oferta que te espera na minha mão aberta? Estas coisas precisam de respirar. Não se podem deitar fora mas também não se podem guardar. Resta aceitar. Ou recusar. Mas não vamos falar de decisões tristes. Aceita-me tal como eu te aceito, neste instante, ainda sem saber se existes. Esta carta só é para ti quando te encontrar. Por agora, é para mim, para me deixar sonhar.
Sonho contigo, mas sem face. É uma tristeza que me acorda a meio da noite e não me deixa dormir até que a outra metade passe. Talvez seja melhor que não recordemos dos sonhos as feições das pessoas com quem sonhamos sem conhecer. Talvez seja um favor do universo que nos deixa esse bocadinho do sonho difuso, confuso, disperso. Se o teu rosto fosse uma imagem que eu pudesse recordar depois de acordar seria um golpe de espada, porque dos sonhos só trazemos recordação e mais nada. Seria sofrer por te reconhecer sem realmente te ver. O melhor mesmo é esquecer.
Mas sei que existes. Aí, nesse lugar do mundo, ao nível do mar, a escalar ao alto da montanha tamanha ou a descer ao vale profundo. Persistes. Estejas onde o acaso quiser, preciso de ti para viver. Não é depender da tua vida para viver a minha, nada disso. É que, sem me partilhar contigo, a obra de arte que desejo da minha vida não passará de um esquisso. Sei que isto é cliché para quem lê, mas és a metade que não tenho. Enquanto não te encontrar és aquela angústia de viajar para longe de casa sem saber se regresso, e de todas as pessoas de quem me despeço se algumas perco e outras ganho.
Quero encontrar-te e conhecer-te. Quero ganhar-te e merecer-te. Depois seremos felizes. O melhor possível, que o dia-a-dia é imprevisível. Tu ris-te do que eu digo e eu rio-me do que tu dizes. Beijamo-nos todas as manhãs, todas as tardes e todas as noites, sem precisarmos de rimas, nem de poesia disfarçada numa prosa bonita. Precisamos apenas de nós, dos nossos rostos, dos nossos braços, das nossas mãos, dos nossos olhos. Das pernas que nos cruzam no caminho, dos pés que nos equilibram, do corpo todo que trocamos um com o outro. E crianças. Teremos ou não. Mas teremos sempre o que somos. Teremos coração.

De mim para ti.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

o fundo do poço

imagem: Manuel Alves

O fundo do poço é um corpo comido até ao osso. Embate-se no fundo depois da rejeição do mundo. Vai-se a esperança e esquece-se a bonança. Cada dia em que nos tiram tudo é mais um prego no caixão pela mão de um coveiro mudo. Um homem presidente que nos serviria melhor se, em vez de homem senhor, fosse homem decente. Cada amanhã é um levantar do colchão que nos faz arrastar os pés pelo chão. Nem chega a ser desilusão de vida, é mais uma sensação de que alguém nos impede de aceitar uma viagem oferecida. Alguém quem? As pessoas que deviam cuidar de nós mas que quanto maior a necessidade mais nos deixam sós. Todos somos crianças do país em que vivemos, crianças abandonadas pelos adultos que elegemos. Não são adultos, são apenas vultos. Criaturas sem rosto que conhecemos apenas pelo posto. Políticos somíticos. Ladrões de direitos, esses cabrões eleitos. Gostaria de ser rico e ignorante. O resto não seria importante. Faria parte dessa classe culpada pelo buraco sem fundo para onde atiraram o mundo. E, como eles, da abertura do poço, ria-me de todos vós, caídos, abandonados, sós e de corpo comido até ao osso.

terça-feira, 9 de julho de 2013

a folha em branco


A folha em branco não mete medo. Às vezes, é apenas uma ideia que vem demasiado cedo. Pode até ser um susto criativo que, quando muito forte, faz dizer mal da sorte porque parece castigo. Mas e todas as coisas que a folha em branco convida a inventar? Isso não pode ser azar. É uma fortuna de mãos cheias de maravilhas. Um mapa do tesouro que conduz a riquezas enterradas numa imensidão de ilhas. É escrever, letra a letra, e cada palavra, com a sua cor preta, faz o branco desaparecer. É criar, inventar e sonhar. Repetir, sorrir e respirar. A folha em branco é uma criança que nos sobe para o colo e nos pede para a embalar.

terça-feira, 18 de junho de 2013

o meu país

ilustra: Manuel Alves

É uma criança com fome o meu país. Fome de tudo. E, porque o meu país é mudo, sou eu quem o diz.
O meu país tem um presidente contente, que julga que o estado de graça é a complacência para com os culpados da trapaça que apunhala nas costas o trabalho de gente honesta e decente. O homem no cargo diz que tudo está bem, mesmo quando a democracia sofre de embargo para todas as pessoas de bem. As pessoas de mal não sofrem com isso, pois são elas que fazem do homem no cargo submisso.
O meu país tem um primeiro-ministro sinistro, que nega toda a estupidez do poder que exerce na sua vez. O seu tempo de reinar à cabeça do governo criou um mal-estar que, por mais que ele se esforce para que toda a gente esqueça, deixou o meu país enfermo. Não sei se esse homem que pode de verdade, abaixo do homem no poder, é um caso de insanidade mas o que mais há-de ser? Imbecil, será ou não. Mas tem perfil de pau-mandado dos interesses obscuros de quem parasita os fundamentos da nação.
O meu país tem um governo equilibrista sobre o abismo, com uma falha no mecanismo interno a fazê-lo pender para o fascismo. A lei da terra beneficia aquele que erra. A justiça até seria uma anedota castiça mas se a verdade da igualdade não assentasse numa premissa postiça. Tudo o que é justo apanha o governo de susto, principalmente quando se eleva a voz da gente a dizer que todos são iguais, mas outros são mais. Uns são filhos da mãe, outros são filhos de ninguém.
O meu país tem uma política de furto; pilha casas, empregos, salários, direitos e liberdades numa epidemia mais mortal a cada surto. Vive-se de nada quando quem devia dar tira, e há uma liberdade envenenada até no ar que se respira. A oposição dos partidos é uma colecção de favores devidos, a mão que lava a outra numa parelha obscena, que não sente culpa, remorso nem pena. É o eterno compadrio de alternância que se mantém, desde a minha infância, por anos e anos a fio, num vaivém de desdém.
O meu país tem um povo que é coisa mole dentro da casca do ovo. Ainda não nasceu. Ainda não sabe o que é seu. Ainda é só população desprovida de acção. É esperar que ganhe coração com força de intenção. É esperar que a casca se parta quando a população já estiver mesmo farta. Mas a casca não se parte sozinha, como solução demasiado fácil para a dificuldade de uma adivinha. Cada um terá de sangrar os nós dos dedos sem medos. É esmurrar a casca por dentro, em desafio ao poder do centro que guarda todas as entradas e saídas, com as suas regras estabelecidas, e gritar palavras de coragem selvagem. Se quiser, entro! Se quiser, saio! Mesmo que me ataquem com todo o poder do centro, não caio!
O meu país tem esperança de mudança. A esperança é uma ilusão de criança. A infância é o pouco tempo que temos para percorrermos muita distância. É a pressa de uma viagem que se faz sem sabermos onde será a última paragem. Mas nós, adultos, sabemos que, como ensina o ditado, se parar é morrer, ao deixarmos as coisas neste estado, então, será outro o chavão: calar é perder.
O meu país não me pertence. É esta a realidade que me vence. É coisa para dar e vender nas mãos de quem não quer saber. É pedaço de chão mais duro do que côdea de pão. É vida difícil para se ter quando tudo o que se quer é viver. É uma promessa sem fundamento que oferece a embalagem do alimento que, por dentro, vem vazia de sustento. Sou forte, mas preciso de sorte. E da força de um cento, caso contrário, não aguento.
O meu país, o meu país…

segunda-feira, 3 de junho de 2013

um sorriso de paisagem

No fundo, bem lá ao fundo, havia um pedacinho de verde perdido no horizonte do mundo. Era um sorriso de paisagem ou apenas a minha imaginação a acenar-me de passagem. Não sei. Passado o momento, não sei o que era. Mas olhei. E ainda bem, porque tudo o que está de passagem não espera. Havia no céu azul uma clareza de vidro de janela com transparência de limpeza. O horizonte era a linha dentada do monte. Recortes de chão que, ao longe, me cabiam na palma da mão. A subir e a descer, até onde a vista era capaz de ver. E eu, à janela, numa espera que não era mais do que o desejo de me aproximar dessa paisagem e perder-me nela. Mas apenas fiquei sentado aqui, a sonhar ilusões viajantes para terras distantes, por causa de um pedacinho de horizonte que vi.



NOTA: ver em qualidade máxima, para nitidez do texto.

sábado, 1 de junho de 2013

a criança entretida

À porta da vida, um gato abandonado encontrou uma criança entretida. Era um menino que tocava flauta, de ouvido, sem pauta. O menino descalço era flautista que, sem ser artista, não soprava uma nota em falso. E o gato sentado, a escutar; quando tivesse aquele som memorizado afinaria os bigodes para miar.
O menino flautista via o gato mas imaginava ilusões da vista. À sua frente, imaginava uma fera selvagem capaz de aterrorizar toda a gente à sua passagem. Ouvira dizer que a música amansava qualquer fera e transformava a explosão do espírito selvagem numa paciência de espera.
O gato abandonado encontrou um amigo à porta da vida e deixou de ser fera enraivecida. Não foi a música que o amansou, foi a atenção do menino descalço que a tocou.

(a partir de uma imagem de Vladimir Zotov)

terça-feira, 28 de maio de 2013

as putas das línguas

Junto ao mar havia uma feiticeira. Diziam que quando as mulheres nasceram, ela foi a primeira. Espalhavam-se rumores de maledicências cheias de horrores. Que a feiticeira encantava homens sem calma, que depois de seduzidos perdiam a alma. Eram tiranias de línguas truculentas que mexiam nas bocas de mulheres ciumentas. Junto ao mar vivia apenas uma mulher muito só. Tudo o que diziam eram coisas mesquinhas de gente sem coração nem dó.
A mulher chorava a morte do marido como se cada instante fosse aquele em que ele tinha partido. Partir não era a mesma coisa que morrer. Partir era deixar de viver de uma maneira menos feia. Já morrer, isso, era coisa de mosca comida na teia. Mas a mulher não chorava com lágrimas. Cantava e dançava. Fazia versos no baloiçar das águas. Era assim que imaginava filhas nas ondas e espantava as mágoas.
Mas as putas das línguas envenenavam-lhe a reputação. As mulheres ciumentas inventavam-lhe traições de coração. Diziam que a feiticeira comia maridos. Que os fazia sair de casa, e até deixar os filhos esquecidos. A feiticeira destruía o lar de qualquer homem que fosse capaz de a amar. E todos eram capazes. Homens e até rapazes.
A mulher sentava-se na praia, tardes inteiras, à espera do pôr-do-sol. Às vezes, os homens que regressavam do mar ofereciam-lhe coisas apanhadas no anzol. O que ela queria era que lhe oferecessem companhia. Nenhum ficava. Todos tinham receio do que depois se falava. E ela ficava sentada na areia até escurecer. Havia noites em que esperava pela lua cheia que vinha depois de o sol descer.
As putas das línguas só falavam da devassidão que se passava na escuridão. A feiticeira tinha mais poder quando se acabava a luz do dia. Não havia nada que não pudesse fazer, e fazer tudo era o que ela queria. Entoava feitiços para deixar os homens submissos, e mexia-se em danças despidas de saia para cativar os homens que regressavam de noite à praia. A feiticeira deixava as camas vazias e frias. Arrefecia matrimónios com o bafo gelado de fantasmas e demónios.
A mulher adormecia com o fervilhar da espuma salgada. Era verdade que se despia, mas para se banhar no mar e adormecer lavada. Lavada de memória e não de pele, que o sal seca e deixa a escória que estala em casca que apenas a água doce repele. Gostava de adormecer assim, na escuridão e sozinha. Mas, às vezes, lá vinha um ou outro homem que trazia na mão uma luzinha. Não tinha o direito de mandar ninguém embora. A praia era deles também, e pertencia-lhes a qualquer hora.
As putas das línguas reclamavam de todas as manhãs passadas sozinhas na cama, porque os maridos já não se encontravam. Era a feiticeira que os levava. Ela mandava no sono das pessoas que se deitavam de corpo cansado. Quando uma esposa fechava os olhos na luz que se apagava, o marido era-lhe roubado. Era preciso fazer alguma coisa que a levasse dali com os seus encantos. Não iam perder mais maridos depois de já terem perdido tantos.
A mulher acordava com os passos dos pescadores que se levantavam cedo para a faina. Era um deslizar de barcos na areia, que se faziam ao mar. O canto do galo daqueles lados era a coragem dos homens acordados que não se deixavam intimidar. Deitavam pés descalços à água, sujeitos aos azares do desgosto e da mágoa. Ela só pensava ai se o mar não amaina. Pedia à Santa para os proteger. A todos, sem escolher. O marido tinha-lhe partido num dia em que ela se esqueceu de fazer aquele pedido.
As putas das línguas tecerem planos malvados. Não queriam que os maridos continuassem enfeitiçados. Enquanto eles lutavam com o mar, lá muito longe do olhar, elas pensaram no que fazer para aquilo se resolver. As feiticeiras atavam-se e afogavam-se. Iam fazer tudo às suas próprias custas, e deixariam as contas saldavas e justas. A feiticeira não havia de lhes levar mais maridos. Já bastava o que sofriam pelos idos.
A mulher tinha deixado os pescadores passar, e adormeceu outra vez. Antes não se tivesse voltado a deitar. Foi o pior e último erro que fez. Acordou novamente, rodeada de gente. Estava deitada no meio de uma roda de esposas muito zangadas. Foi enrodilhada em cordas bem apertadas. Sorriu para aqueles rostos cheios de ódio. Sentia-se a vencedora no primeiro lugar do pódio. Finalmente ganharam coragem para a atar. Ou cobardia, não sabia. Só sabia que a seguir a deitariam ao mar.
As putas das línguas desculparam-se umas às outras, sem excepção. Aquilo era o que tinham de fazer, e bastava como razão. Não tiveram piedade para a arrastar até à água e apenas deixá-la afundar. Ergueram-na nos braços e percorreram a praia em movimentos de saia, com o peso da feiticeira a afundar-lhes os passos. Subiram lá acima, bem ao topo da colina. Seguiram o caminho do rochedo onde as alturas davam tonturas de medo. Era ali que o iam fazer. Iam atirá-la lá de cima e ficar a vê-la morrer.
A mulher fechou os olhos e aceitou. Chorou. Não era feiticeira, nem tinha roubado um único marido. Nada daquilo fazia sentido. Sentia saudades daquele que perdeu. Mas esse marido era seu. Ia voltá-lo a abraçar. Pediu às putas das línguas que a atirassem ao mar.

domingo, 26 de maio de 2013

o que somos

Somos livros de ler e deitar fora. Uma leitura sem vontade que se despacha em menos de um quarto de hora. Num qualquer quarto, a qualquer hora. Somos rapazes disfarçados de raparigas que se disfarçam de rapazes para conquistar raparigas que apenas querem ser conquistadas por rapazes que se disfarçam de homens. E essas raparigas apenas gostam de se disfarçar de mulheres. É o que eu digo para o espelho. O que é que queres, caralho? Somos todos assim, gajos e gajas, umas putas travestidas, sem coração, que aceitam dinheiro de qualquer mão. O corpo não interessa. Quando já não serve para uma pessoa escolhe-se outra que não seja essa. Muda-se a pele, está rota, tingida, apertada, fora de moda, ou qualquer outro nada — que se foda — e veste-se outra peça. O corpo antigo é saco com restos de comida, que se deixa atrás do grande contentor de lixo, em cima do charco de mijo de cão que se evapora do chão.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

entre o colossal e o abissal

Duas ideias que partilham o mesmo destino, o profano e o divino. Todos temos deuses e demónios interiores; uns que nos aliviam as dores e outros que nos atormentam com horrores. Mas os deuses não nos podem salvar das profundezas do mar se o nosso barco afundar e não soubermos nadar. Quem nos salva somos nós que, com o nosso próprio destino, todos lutamos sós. A grandeza de tudo o que é humano reduz-se a espessura de cabelo mais fino do que qualquer fio a partir do qual é tecido um simples pano. Essa grandeza talvez seja a esperteza. Talvez apenas seja a insatisfação de um ser que, por natureza, tem sempre menos do que deseja. O ser humano é uma criança perdida entre o colossal e o abissal, ambos sinónimos de uma grandeza maior que ultrapassa a limitada compreensão do ser pensador.
Os demónios, onde estão? Eles aparecem. É só esquecermos o coração. Depois disso, são os demónios que não nos esquecem. Se formos maus, as nossas vidas tornam-se naus, barcos sem fundo que nos deixam afogar nas tormentas do mundo. Mas há sempre aquela esperança de que depois da tempestade vem a bonança. Mas alguém sabe mesmo o que isso é se não tiver fé? Mas tem de ser uma fé que faz seguir caminho em vez de regredir em marcha-a-ré. Só se consegue essa proeza com uma vontade de acreditar que nos vem daquele lugar onde só com muita coragem se enfrenta a incerteza. O lugar somos nós. Se não o conseguirmos encontrar estaremos sempre sós.


(a partir de uma imagem de  Dehong He)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

a fada e o pardal

A fada perdeu as asas numa aposta com o pardal azul. Se a sua sorte fosse outra, teria ganho um bule. Um bule mágico, não menos. Daqueles que faz um chá muito diferente de qualquer outro que já bebemos.
Mas o pardal enganou a fada, porque a aposta era desigual, uma vez que ele nunca perderia nada. É que o bule nem era dele, e tudo o que ele tinha era apenas um cantil que, na verdade, não passava de um frasco de vidro com o fundo partido, o que tornava ainda mais habilidoso o ardil.
A aposta ficou apenas entre os dois e não voltou a ser mencionada depois.
A fada procurou em livros mágicos por um feitiço que desfizesses todas as apostas que resultam em destinos trágicos. Eram livros escritos com tinta invisível que guardava os segredos do impossível. A fada queria as suas asas de volta às costas e prometeu a si mesma que, se isso acontecesse, se deixaria de apostas.
O pardal chamou o irmão para o ajudar a levar os livros mágicos para longe, muito acima do chão. Lá em cima, muito acima das nuvens flutuantes, a fada não poderia alcançar os livros porque, sem asas, ficar-lhe-iam sempre distantes.
A fada pediu ajuda ao aranhiço tecelão, para que ele tecesse uma teia que prendesse o livro com o melhor feitiço e os pardais não conseguissem afastá-lo muito do chão. O aranhiço atendeu ao seu apelo e a fada protegeu o livro que tinha o melhor feitiço. Era uma poção que tinha de ser mexida com colher de prata e temperada com suspiro de um cogumelo.
O pardal não tinha feito por mal. Enganou a fada, mas tinha uma boa razão. Para ele, não queria nada pois as asas eram para o irmão. Um pardal sem asas ao nascer perde logo a maior razão de viver. Para o irmão poder voar, o pardal viu-se forçado a apostar.
A poção da fada, por uma ironia quase engraçada, era um chá do melhor que há. E o pior era que precisava do bule que deixara escapar na aposta que perdera com o pardal azul. Chamou o pardal e desafiou-o a aceitar a última aposta que ela alguma vez faria. A fada já não tinha asas para apostar e, como não tinha o que mais arriscar, apostou a sua magia. Disse que só precisaria que o pardal lhe emprestasse o bule encantado para o desafio ser validado.
O pardal escutou com atenção e não encontrou nenhum senão. Não possuía o bule, e não… só tinha a ganhar e nada perdia. Mostrou o frasco de vidro com o fundo partido e disse que era o bule mágico que fazia o chá impossível de igualar apesar de parecer apenas um frasco vulgar.
A aposta voltou a ser um segredo para mais ninguém conhecer, e quem ganhou e perdeu foi a única coisa que se chegou a saber.
A fada esboçou um sorriso e fez aquilo que era preciso. Leu o feitiço da tinta invisível em tom seguro e audível.
“O chá desfaz a decisão má. O chá que se bebe. O cogumelo suspira pelas folhas secas amolecidas na humidade para além do prado separado da floresta pela fronteira da sebe. A colher de prata mexe tudo, sem tilintar, sem enjoar no rodopiar do chá que será bebido por um paladar sortudo. O chá desfaz a decisão má. O que faz o bule ter magia é o chá que dentro dele rodopia nas voltas da colher, e o chá pode fazer-se até dentro de um frasco qualquer. O segredo está em quem o bebe de consciência leve. O bule é a vontade de quem persiste pois o bule, o bule, esse, não existe.”
A fada bebeu o chá e desfez a decisão má. Recuperou as asas e manteve a magia ao vencer a última aposta que alguma vez faria. Partilhou o feitiço com o pardal para que ele pudesse fazer um chá igual, porque o chá também tinha o poder de anular o azar de pardais desprovidos de asas ao nascer.
O pardal azul, para dar novas asas ao irmão, acreditou na sua determinação e fez dessa vontade o bule.

(a partir de uma imagem de Lorie Davison)

quinta-feira, 18 de abril de 2013

o engano dos sentidos

foto: Manuel Alves

— Ouvir dizer que te achavam no rosto aquela magia de nascer do dia e a melancolia quieta do sol-posto. Não posso dizer que essa magia seja feitiço que me obriga a achar tudo isso. Também ouvi dizer que a beleza das coisas está nos olhos de quem observa. Se é cliché, ninguém sabe ao certo porquê. Mas é uma falta de explicação que enerva. O que me interessa o que dizem do teu rosto se o que vale para mim é aquilo de que eu gosto?
— Ouvi dizer que achavas o meu rosto horrível, uma coisa de monstro insensível. Se os teus olhos são cegos, como és capaz de julgar aquilo que eu posso ser se nem sequer me consegues ver?
— Os olhos não nos dão a melhor perspectiva de uma pessoa. Uma face bonita não veste sempre uma alma boa.
— Sim, já sabemos que as aparências podem enganar e que não enganam apenas o olhar.
— Pois não. Também enganam o coração.
— Mas, então, em que ficamos? Todos os feios são monstros e só os bonitos são humanos?
— Nada de tão errado. Isso é um raciocínio apressado. Os monstros não são sempre terríveis nem os humanos são sempre sensíveis. Apenas sei que a aparência engana o olhar como se não fôssemos capazes de enxergar. Os meus olhos não são. Tenho apenas aquilo que os outros sentidos me dão.
— Mas e aqueles que conseguem ver? O que hão-de fazer? Se desconfiarmos do olhar, em qual sentido devemos confiar. O olfacto engana-nos da mesma maneira que o tacto. Ambos recorrem à memória imprecisa dos acontecimentos que são recordados consoante a importância dos momentos. E o paladar, mesmo que seja difícil de enganar, é um sentido fácil de subornar. E tu, que não vês, se desconfiares assim de cada sentido, resta-te apenas um para evitar que o mundo fique escondido. Vais confiar na audição? De onde te vem essa convicção?
— Se queres saber, ouvi dizer.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

a camponesa e o príncipe

A camponesa pediu ao príncipe encantado que não lhe deixasse o coração magoado. A vida já a magoara o suficiente e que, pelo menos ele, a tratasse como gente.
O príncipe encantado sorriu e prometeu-lhe o que ela pediu. Disse que as suas intenções eram tão nobres quanto o seu título real e que jamais lhe faria mal.
A camponesa sorriu-lhe um alívio tranquilo como se lhe bastasse ouvir aquilo. Era uma coisa boa sentir que, pelo menos ele, a reconhecia como pessoa.
O príncipe encantado tomou-a num beijo que há muito era desejo. Aprendera, com outras camponesas do reino, que quando se deseja mesmo uma mulher promete-se tudo o que ela quer.

sábado, 6 de abril de 2013

uma espada na mão

Uma espada. Uma espada é só o que peço que me ponham na mão. Não preciso de mais nada para cumprir a minha intenção. Mas eu, que estou preso, o que poderei fazer com ela por entre as grades da cela? Posso ameaçar o carcereiro que me mantém prisioneiro. Posso passar-lhe o fio no pescoço e só parar quando a carne secar de sangue até ao osso. Tiro-lhe a chave que abrirá a porta e me dará asas de ave. Se somos inocentes de verdade, matar quem nos prende não é maldade é direito à liberdade. Mas e se quem nos prende obrigar a mão de um carcereiro inocente? Não é tão criminoso o que nos aprisiona como aquele que o consente? O que sei é que sou eu que estou do lado de dentro das grades, privado de todas as vontades. Todas, menos a de viver. Dêem-me uma espada para a mão e serei capaz de a merecer.

terça-feira, 26 de março de 2013

o coração bombista

Partiu deste mundo com uma explosão no peito, num desenho de vida expandida em múltiplas trajectórias disparadas a direito. Do coração, restou um pequeno saco rebentado no chão e um charco de sangue vertical, a desenhar linhas em queda livre pela parede como pincel de tinta vermelha a criar uma pintura oriental.
Morreu de emoção. Alegre, com satisfação, feliz como ninguém. Só assim foi capaz de expressar o tamanho que um afecto impossível tem. Morrer, de verdade, não morreu; foi apenas o que sentiu quando, sem contar, um dia descobriu um amor que sempre quis seu.
Explodiu-lhe o peito, como se fosse esse o propósito para o qual o coração foi feito.

segunda-feira, 18 de março de 2013

um momento

Hoje, morro. Porque sim. Porque acontece a todos e não apenas a mim. Porque ninguém quer saber. Porque todos estão ocupados com o seu próprio viver. Porque todos morrem. Todos. Os que param, os que andam e os que correm. Todos morrem.
Amanhã, não sei. Estarei morto, um barco encalhado no porto. Não viverei. Estarei esquecido, perdido, ressequido. Não estarei.
Ontem, vivi. Não de verdade. Não na realidade. Não aqui. Vivi na tenra idade, na distância da infância, na saudade de tudo o que esqueci.
É o tempo, essa condição que não aguento. É o tempo. O tempo de fazer coisas. O tempo de não as fazer. O tempo das coisas que são más. O tempo das coisas que são boas. É o tempo. O tempo passa num instante em que nada importa e tudo é importante. E um instante nunca é bastante, porque um instante não é muito tempo. Um instante é só um momento.

quinta-feira, 14 de março de 2013

a proximidade das estrelas

Que melhor maneira de alcançar as estrelas do que acreditar que estão realmente perto? O resto são mentiras de telescópios orgulhosos da sua visão mais longínqua mas invejosos da nossa imaginação mais profunda. Em questões de estrelas, não importa se o que acreditamos não é verdade, importa apenas que a crença sonhadora nos sirva melhor do que os factos da realidade. Como são bonitas as estrelas aqui tão perto! São chão que podemos sentir com a mão e céu iluminado de deserto. O resto, não quero saber. As estrelas estão próximas se me apetecer.

sexta-feira, 8 de março de 2013

perspectivas

Há sempre duas histórias para contar acerca de uma pessoa; a verdade e a mentira. O meio-termo é uma ilusão de ingénuos. A meia-verdade não é, como o próprio nome engana com malícia, a metade de uma verdade mas sim a totalidade de uma mentira. Omitir, deliberadamente, informação que influencia a interpretação de uma afirmação é sempre a intenção de enganar quem interpreta. Omitir não é mentir? Que acredite nesse engano quem o quiser. É possível não revelar a verdade sem afirmar directamente a mentira? É. Quem o faz, fá-lo conscientemente e conhece como funciona a percepção imperfeita da mente. Há quem domine todo esse exercício de equilíbrio delicado com ironia, sarcasmo e cinismo, com a mesma habilidade de um acrobata exímio em questões de equilibrismo. Nesse constante desafio da queda não há rede entre o acrobata e o fundo do mundo. Na queda, a verdade mata e a mentira morre, a crueldade da realidade é um acidente do qual ninguém nos socorre. Todas as pessoas mentem? Claro que não…

terça-feira, 5 de março de 2013

e depois?

Se queres que te aceitem como és, aceita que nem todas as pessoas te aceitarão por causa daquilo que elas são. É uma tragédia? Não. As pessoas têm direito a essa opção. Têm direito a errar na escolha sem te conhecerem. Têm liberdade para escolherem pessoas piores do que tu apesar de, a essas, as conhecerem. É a irracionalidade dos afectos. Não é possível analisar as falhas da razão em todos os aspectos. Certas falhas da razão são culpa do coração. São os dentes do animal de estimação que, num dia de desentendimento, sem remorso nem lamento, nos mordem a mão. E a culpa é dos dentes do peixe, do réptil, do gato ou do cão? Não. A culpa é nossa, por lhes estendermos a mão. E depois? Depois, é a vida. Continua-se com a aprendizagem dos erros, de cabeça levantada e decidida, mesmo que todos os dias nasçam de um parto a ferros.

sexta-feira, 1 de março de 2013

a mentira da verdade

Será assim tão inconcebível aceitar a verdade? Mentir é um hábito tão enraizado nos costumes humanos que já quase não se aceita que alguém possa simplesmente dizer a verdade. O trágico desta realidade é que, de tão grande habituação à mentira, a mentira é a única realidade possível. A verdade aceita-se com a maior das relutâncias e a mentira aceita-se com a maior das ignorâncias.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

o espírito livre

Sou um espírito livre; uma essência eterna que, como outras iguais, vagueará para sempre, de corpo em corpo, na eternidade da mente.
Fui peixe que sabe o que é viver sob dois céus; um de água, outro de ar. Fui pássaro que sabe o que é estar no céu sem lhe poder tocar. Fui animal que sabe o que é ser presa e predador. Fui arbusto que sabe que nunca será robusto como uma árvore nem delicado como uma flor. Fui rio que sabe que nunca voltará a nascer sempre que morrer no mar. Fui rochedo que sabe o que é preciso para ser forte e perseverar.
Orgulho-me de tudo o que fui em cada existência que passou; precisei de ser homem para me envergonhar do que sou.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

a palavra é uma espada partida

A poesia é uma regra quebrada
Não deixa que a razão tome conta de nada
Faz o que quer
É coração de mulher

E depois estraga-se
Apaga-se
Como se tudo fosse igual
Sem diferença entre bem e mal

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

beijo na boca

ilustra: Manuel Alves


Beijo na boca é coisa pouca para uma vontade louca. Beijo na boca não é só bom, é necessidade de tocar com as pontas dos dedos, sem medos, com música a sair do peito, numa corrida de sonhar o que ainda não foi feito, ao som do coração.
Não é de ter vontade? Não é de querer dar?
É uma resposta que merece sempre a verdade. E a resposta deve ser sem palavras, apenas e só, beijar.
Mas só um beijo? Isso não chega para o desejo. Dois? Só se houver um terceiro depois. Um beijo só nunca mata a fome. Um beijo só deixa-nos na vontade. E isso é uma maldade. Assim… é a vontade que nos come.
Beijo na boca é terra e mar que se querem encontrar. É céu e terra sempre afastados, mas que se tocam onde o horizonte encerra, nessa linha distante, onde o olhar se fecha, e o celestial e o mundano se encontram nesse abraço onde tudo se deixa.
Deixassem as pessoas assim tanto. Fossem assim tão necessitadas de coisas que sabem bem. Necessitadas até são, mas afastam-se todas, cada uma para o seu canto, mesmo necessitadas como ninguém.
Para quê ser assim? É pergunta que cada um responde como sabe. Não é resposta que alguma vez se acabe. É uma viagem sem fim.
Mas… e beijo na boca quando se quer? Isso existe? Não será apenas uma teimosia em que se insiste? Não será o delírio de outra realidade qualquer?
Oh, beijo na boca a partilhar calor! A dar vontades que preenchem todas as realidades. A fazer promessas de tudo e o que mais for, para além de quaisquer mentiras e verdades.
Beijo na boca é dar e receber. É querer. Beijo na boca é pedir e aceitar. É beijar.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

o livro papagaio

Oh, tivesse eu um livro para fazer de papagaio para fazer de imaginação para fazer de papel. Era vê-lo passear nas costas do vento, sem pedais nem volante nem espelhos nem assento. Ia ser um virar de página que era terra que era erva que era lençol de rio a desfiar palavras, fio a fio. E eu, um menino encantado, de livro nos joelhos, a ler sonhos de novos e velhos como se tudo fosse ali inventado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

olá

foto: Manuel Alves

Sou o príncipe canalha das marés altas, em caravela pirata, que ataca, pilha e mata. Nem vasos de guerra, nem fragatas reais, nem armadas invencíveis e outros adversários mortais; diante dos meus canhões e pontaria que não erra, são todos insignificantes, anões, perecíveis e deitados por terra. Não me chamam pelo nome os metais nobres, nem as pedras preciosas, nem as obras de arte mais valiosas. Sou o ladrão de esquecimentos, roubo corações e sentimentos, moças pouco amadas e mulheres mal casadas. Dou ordens ao vento, que me agarra a lona das velas, sempre que é preciso fugir, na pressa do momento, das mulheres e dos maridos delas.