quinta-feira, 18 de abril de 2013

o engano dos sentidos

foto: Manuel Alves

— Ouvir dizer que te achavam no rosto aquela magia de nascer do dia e a melancolia quieta do sol-posto. Não posso dizer que essa magia seja feitiço que me obriga a achar tudo isso. Também ouvi dizer que a beleza das coisas está nos olhos de quem observa. Se é cliché, ninguém sabe ao certo porquê. Mas é uma falta de explicação que enerva. O que me interessa o que dizem do teu rosto se o que vale para mim é aquilo de que eu gosto?
— Ouvi dizer que achavas o meu rosto horrível, uma coisa de monstro insensível. Se os teus olhos são cegos, como és capaz de julgar aquilo que eu posso ser se nem sequer me consegues ver?
— Os olhos não nos dão a melhor perspectiva de uma pessoa. Uma face bonita não veste sempre uma alma boa.
— Sim, já sabemos que as aparências podem enganar e que não enganam apenas o olhar.
— Pois não. Também enganam o coração.
— Mas, então, em que ficamos? Todos os feios são monstros e só os bonitos são humanos?
— Nada de tão errado. Isso é um raciocínio apressado. Os monstros não são sempre terríveis nem os humanos são sempre sensíveis. Apenas sei que a aparência engana o olhar como se não fôssemos capazes de enxergar. Os meus olhos não são. Tenho apenas aquilo que os outros sentidos me dão.
— Mas e aqueles que conseguem ver? O que hão-de fazer? Se desconfiarmos do olhar, em qual sentido devemos confiar. O olfacto engana-nos da mesma maneira que o tacto. Ambos recorrem à memória imprecisa dos acontecimentos que são recordados consoante a importância dos momentos. E o paladar, mesmo que seja difícil de enganar, é um sentido fácil de subornar. E tu, que não vês, se desconfiares assim de cada sentido, resta-te apenas um para evitar que o mundo fique escondido. Vais confiar na audição? De onde te vem essa convicção?
— Se queres saber, ouvi dizer.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

a camponesa e o príncipe

A camponesa pediu ao príncipe encantado que não lhe deixasse o coração magoado. A vida já a magoara o suficiente e que, pelo menos ele, a tratasse como gente.
O príncipe encantado sorriu e prometeu-lhe o que ela pediu. Disse que as suas intenções eram tão nobres quanto o seu título real e que jamais lhe faria mal.
A camponesa sorriu-lhe um alívio tranquilo como se lhe bastasse ouvir aquilo. Era uma coisa boa sentir que, pelo menos ele, a reconhecia como pessoa.
O príncipe encantado tomou-a num beijo que há muito era desejo. Aprendera, com outras camponesas do reino, que quando se deseja mesmo uma mulher promete-se tudo o que ela quer.

sábado, 6 de abril de 2013

uma espada na mão

Uma espada. Uma espada é só o que peço que me ponham na mão. Não preciso de mais nada para cumprir a minha intenção. Mas eu, que estou preso, o que poderei fazer com ela por entre as grades da cela? Posso ameaçar o carcereiro que me mantém prisioneiro. Posso passar-lhe o fio no pescoço e só parar quando a carne secar de sangue até ao osso. Tiro-lhe a chave que abrirá a porta e me dará asas de ave. Se somos inocentes de verdade, matar quem nos prende não é maldade é direito à liberdade. Mas e se quem nos prende obrigar a mão de um carcereiro inocente? Não é tão criminoso o que nos aprisiona como aquele que o consente? O que sei é que sou eu que estou do lado de dentro das grades, privado de todas as vontades. Todas, menos a de viver. Dêem-me uma espada para a mão e serei capaz de a merecer.