quarta-feira, 1 de maio de 2013

a fada e o pardal

A fada perdeu as asas numa aposta com o pardal azul. Se a sua sorte fosse outra, teria ganho um bule. Um bule mágico, não menos. Daqueles que faz um chá muito diferente de qualquer outro que já bebemos.
Mas o pardal enganou a fada, porque a aposta era desigual, uma vez que ele nunca perderia nada. É que o bule nem era dele, e tudo o que ele tinha era apenas um cantil que, na verdade, não passava de um frasco de vidro com o fundo partido, o que tornava ainda mais habilidoso o ardil.
A aposta ficou apenas entre os dois e não voltou a ser mencionada depois.
A fada procurou em livros mágicos por um feitiço que desfizesses todas as apostas que resultam em destinos trágicos. Eram livros escritos com tinta invisível que guardava os segredos do impossível. A fada queria as suas asas de volta às costas e prometeu a si mesma que, se isso acontecesse, se deixaria de apostas.
O pardal chamou o irmão para o ajudar a levar os livros mágicos para longe, muito acima do chão. Lá em cima, muito acima das nuvens flutuantes, a fada não poderia alcançar os livros porque, sem asas, ficar-lhe-iam sempre distantes.
A fada pediu ajuda ao aranhiço tecelão, para que ele tecesse uma teia que prendesse o livro com o melhor feitiço e os pardais não conseguissem afastá-lo muito do chão. O aranhiço atendeu ao seu apelo e a fada protegeu o livro que tinha o melhor feitiço. Era uma poção que tinha de ser mexida com colher de prata e temperada com suspiro de um cogumelo.
O pardal não tinha feito por mal. Enganou a fada, mas tinha uma boa razão. Para ele, não queria nada pois as asas eram para o irmão. Um pardal sem asas ao nascer perde logo a maior razão de viver. Para o irmão poder voar, o pardal viu-se forçado a apostar.
A poção da fada, por uma ironia quase engraçada, era um chá do melhor que há. E o pior era que precisava do bule que deixara escapar na aposta que perdera com o pardal azul. Chamou o pardal e desafiou-o a aceitar a última aposta que ela alguma vez faria. A fada já não tinha asas para apostar e, como não tinha o que mais arriscar, apostou a sua magia. Disse que só precisaria que o pardal lhe emprestasse o bule encantado para o desafio ser validado.
O pardal escutou com atenção e não encontrou nenhum senão. Não possuía o bule, e não… só tinha a ganhar e nada perdia. Mostrou o frasco de vidro com o fundo partido e disse que era o bule mágico que fazia o chá impossível de igualar apesar de parecer apenas um frasco vulgar.
A aposta voltou a ser um segredo para mais ninguém conhecer, e quem ganhou e perdeu foi a única coisa que se chegou a saber.
A fada esboçou um sorriso e fez aquilo que era preciso. Leu o feitiço da tinta invisível em tom seguro e audível.
“O chá desfaz a decisão má. O chá que se bebe. O cogumelo suspira pelas folhas secas amolecidas na humidade para além do prado separado da floresta pela fronteira da sebe. A colher de prata mexe tudo, sem tilintar, sem enjoar no rodopiar do chá que será bebido por um paladar sortudo. O chá desfaz a decisão má. O que faz o bule ter magia é o chá que dentro dele rodopia nas voltas da colher, e o chá pode fazer-se até dentro de um frasco qualquer. O segredo está em quem o bebe de consciência leve. O bule é a vontade de quem persiste pois o bule, o bule, esse, não existe.”
A fada bebeu o chá e desfez a decisão má. Recuperou as asas e manteve a magia ao vencer a última aposta que alguma vez faria. Partilhou o feitiço com o pardal para que ele pudesse fazer um chá igual, porque o chá também tinha o poder de anular o azar de pardais desprovidos de asas ao nascer.
O pardal azul, para dar novas asas ao irmão, acreditou na sua determinação e fez dessa vontade o bule.

(a partir de uma imagem de Lorie Davison)

7 comentários:

São Bernardes disse...

Fantástico Manuel :) gostei muito :)

Unknown disse...

Olá Manuel..

Mais uma vez, um bonito e generoso texto :)

Também gostei muito ^_^

És um bom participante para desafios :P

Continuação de boa escrita e boas leituras :D

Manuel Alves disse...

Caminhante, a magia é que é fantástica. Eu sou apenas um feiticeiro. ;)

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Olá, Carla.
Desafios é o meu nome do meio (pronto, não é. mas, se fosse, não seria a coisa mais estranha do mundo :D ).

Fiacha disse...

Olá Manuel,

A ver se exploro melhor o teu blogue, mas nem sempre é possível conseguirmos ir a todas :D

Gostei do teu texto, percebi que gostas de desafios de escrita e isso é bom, pois tenho lido muita coisa que me tem surpreendido pela positiva em especial destas duas amigas.

Dava-te uma sugestão, se me for permitido :D, penso que devias colocar a foto que deu origem ao texto, pelo menos os teus outros seguidores poderão perceber melhor o sentido do teu texto.

E pelo que sei já houve continuação do teu texto, só podia ser, mas como vai jogar o glorioso leio logo a seguir eheheh

Abraço feiticeiro negro, amigo de Magnus um dragão igualmente negro :)

Manuel Alves disse...

Olá, Fiacha.

Omnipresença dava jeito para algumas coisas. :D

A própria vida é um interminável exercício de escrita que obriga a revisão constante (certo, está cumprida a percentagem de filosofia reservada para este comentário. :D ).

Quanto à tua sugestão de incluir a imagem que motivou o texto, é válida e já a tinha considerado, mas pretendo manter o blogue apenas com conteúdo criado por mim, texto e imagens. No entanto, incluirei no post, como nota, uma ligação para a imagem original (que tive de procurar para creditar correctamente a sua autora ;) ).

Inté (ou, como se diz em francês: ao roubar... ahah).

carpe vitam! disse...

Ai, os suspiros de cogumelo... é daqueles contos para todas as idades. Que interessa a idade nestas coisas, interessa é acreditar... e alucinar ;)

Manuel Alves disse...

Aqui, a idade é um feitiço que leva chá de sumiço. ;)