segunda-feira, 29 de julho de 2013

o erro do universo

 imagem: Manuel Alves

Olá, o meu nome é Ana Maria e tenho leucemia. O meu nome completo é Ana Maria Faria Pequenina. Mesmo Pequenina, porque é o último nome do meu pai apesar de ele não ter nascido menina. De onde veio, não me perguntem, não sei. É o meu nome e foi sempre assim que me chamei. Sempre não é muito tempo. É o tempo todo que aguento. O meu sempre tem seis anos e quatro meses. Quando as pessoas me visitam perguntam-me de todas as vezes. É desde que nasci. Só o tempo que vivi.
A minha mãe chora sempre que se deita ao meu lado, na cama. E depois sorri. Diz-me “vou ficar só mais um pouquinho aqui.” Limpa o nariz, finge que está feliz e diz que me ama.
Havia uma senhora que me visitava duas vezes por dia. Ficámos amigas e eu até já lhe chamava tia. Era uma senhora engraçada e aparecia sempre animada. Também tinha leucemia mas escondia. Pensava que eu não sabia. Dizia-me coisas engraçadas acerca do transplante de medula. Uma vez contou-me uma história divertida em que havia uma menina que era um biscoito e a leucemia era um bicho-papão com gula.
Era uma senhora engraçada. Fazia-me rir. Estou preocupada. Deixou de vir.
O senhor doutor é muito amável. Nunca o ouvi dizer a palavra incurável. É capaz de a ter dito aos meus pais. Mas eu não preciso de saber mais.
As enfermeiras são todas boazinhas. Dizem-me sempre olá a fazem-me festinhas. Uma vez, uma sentou-se na beira da minha cama, pegou-me na mão e chorou. Ouvi depois comentar que ela também tinha uma menina como eu que não se curou. Chorei por causa dela sem ninguém saber. Não era para se dizer.
Hoje, a minha mãe trouxe-me um bolo de aniversário com duas velas. Ri-me da diferença de tamanho delas. Uma era normal e tinha um seis escrito. A outra era desigual, mais pequena e com um quatro, e faziam um par bonito. A minha mãe canta-me os parabéns todos os meses, no dia em que nasci. Sopro as velas e ela dá-me um beijo. Depois sai do quarto, para chorar onde eu não vejo. Quando chegar o dia de fazer sete anos sei bem que já não estarei aqui. Soprei as velas e sorri.

12 comentários:

dragonisa disse...

Um texto muito realista e comovente, a fazer-nos lembrar que "justa", não é a palavra que melhor descreve a vida...

Manuel Alves disse...

Olá, dragonisa. :)

Porque é que o universo não fez as crianças imortais?

dragonisa disse...

Pois... o Universo pode não ser perfeito...

carpe vitam! disse...

deve haver uma lógica qualquer que nos escapa. só mesmo pensando que vão para um sítio melhor... o que fazer?
foi por causa de uma menina assim que me inscrevi para dar medula. estive imenso tempo à espera porque havia muita gente que queria ajudar. mas a menina foi para o tal sítio melhor antes de encontrar dador compatível...
já me chamaram uma vez para fazer testes, mas passado algum tempo enviaram-me uma carta a dizer que a pessoa com quem eu era compatível não estava em condições de receber o transplante. talvez um dia...

Unknown disse...

É um facto...somos pequenas histórias na curta passagem do tempo...esta foi uma pequena corajosa e sorridente. A melhor forma para desafiar as pedras de um caminho misterioso..

É desta bravura que se conhecem os heróis, a sua honra não está na duração da sua vida, mas na forma intensa e corajosa de como vencem as suas lutas..

Um texto...não direi bonito (ainda que seja), direi apenas o que sinto, que nos obriga a lembrar que viver cada dia é de facto uma vitória, e merece ser respeitada e saboreada honestamente...;)

:)

Manuel Alves disse...

carpe vitam!, perante a incerteza do futuro, há uma coisa a fazer: carpe vitam: ;)

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Carla, as palavras simples mostram-nos aquilo que as coisas são: simples, até ao dia em que apanhamos só obstáculos no caminho e, a partir daí, tudo passa a ser complicação. Ainda assim, mesmo numa sucessão de obstáculos, é possível encontrar pequenos intervalos pelo meio. ;)

carpe vitam! disse...

isso, sempre! e tentar contagiar toda a gente com boa disposição!
Tentar fazer algo por estas crianças e qualquer outra pessoa que precise. A histo-compatibilidade entre pessoas que não são da mesma família é muito rara, mas acontece. E quantos mais dadores houver, maiores são as probabilidades. Para além dos centros de Lisboa, Porto e Coimbra, costuma haver campanhas anunciadas no site e por vezes também é possível fazer o registo nas campanhas de colheita de sangue. é só preciso ter vontade e procurar a informação.

carpe vitam! disse...

Deixo aqui uma sugestão de leitura sobre o tema numa abordagem bem-disposta e positiva: http://www.livrosdeontem.pt/editora/autor.php?autor_id=64

tilida5ever design disse...

Eu não estou inscrita em nada para dar nada...Devo sentir-me mal,eu sei!
Não gosto deste tema.É o meu ponto fraco (o único)!Fico deprimida e,como sabemos,uma mulher deprimida é um caso sério.
Gosto da PEQUENINA!
:)

Manuel Alves disse...

Olá, tilida5ever: :)
A pequenina é uma valente. Sofre as dores todas e diz que não as sente.

Luisa Bernardino disse...

Não sei se vou conseguir ler este conto Manuel Alves. Nenhuma mãe deveria de passar pelo sofrimento de ver os filhos gravemente doentes ou morrerem. O meu menino vai fazer precisamente 6 anos este mês. Tem sido saudável. É uma bênção sem preço.

Manuel Alves disse...

Olá, Luísa. :)
Os pais que sobrevivem aos filhos são, talvez, uma das maiores injustiças do Universo. Felizmente a ordem natural prevalece com maior frequência. Este texto é um tributo à coragem de todos os que passaram pela tragédia ou foram, de algum modo, tocados por ela. E, como não podia deixar de ser, termina com um sorriso. :)